Estudo da FAMED enfocando o olhar das crianças sobre o coronavírus é premiado em concurso nacional

“Coronavírus é uma doença muito grave que pode matar as pessoas, como matou meu tio e minha tia”; “A gente vinha brincar com amigos, saía. Mas, agora, quando tudo parou não dá para sair de casa”; “O almoço que nós ‘come’ de tarde nós ‘janta’ também. Tem dia que nós só ‘merenda”; “Meu pai e minha mãe brigaram, ‘teve’ muitas brigas …”; “O coronavírus deixa a pessoa estressada, e muito. E muito assim, com raiva, aí vem descontar nas filhas”; “Uma peste. A pior peste do mundo”.

As formas de perceber a gravidade da pandemia do novo coronavírus são expressas assim por crianças entrevistadas pela pesquisadora Joana Cantídio Mota Clemente, em estudo durante o mestrado em Saúde da Mulher e da Criança da Faculdade de Medicina (FAMED) da Universidade Federal do Ceará. O trabalho intitulado “Por trás da máscara o olhar das crianças sobre o coronavírus” foi premiado entre os 1.800 inscritos no Concurso de Artigos Científicos sobre Fortalecimento de Vínculos Familiares em Tempos de Pandemia, através de edital da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Imagens: As entrevistas com crianças foram feitas em comunidades urbanas e rurais, incluindo comunidades indígenas, de difícil acesso (Foto: acervo pessoal)

Com elementos escritos e audiovisuais, o trabalho, sob orientação da Profª Márcia Machado, concorreu na categoria “Práticas parentais e desenvolvimento de crianças e adolescentes no contexto da pandemia”, obtendo o quarto lugar. As entrevistas foram feitas de março a junho de 2020 em 10 municípios cearenses, tanto em comunidades da zona rural como na zona urbana, incluindo comunidades indígenas. A análise e a consolidação dos dados ocorreram em dezembro de 2021, mês em que Joana Clemente defendeu a dissertação. As entrevistas foram editadas em três vídeos: “A compreensão sobre o que é o coronavírus”, “O brincar e as relações familiares” e “A perspectiva pós-pandemia”, disponíveis no canal do Instituto da Primeira Infância (IPREDE) no YouTube.

Como integrante do IPREDE, que abriga projetos de extensão da UFC, Joana teve a oportunidade de participar da entrega de alimentos, máscaras de tecido e materiais de higiene em bairros de Fortaleza e municípios do Estado com mais baixo IDH e grande número de casos de covid. No contato com as pessoas dessas comunidades, ela pôde conhecer a realidade daqueles que já viviam precariamente, tiveram suas necessidades acentuadas de forma a não ter nem mesmo o que comer, com o isolamento social e as demais consequências da epidemia do novo coronavírus que fez o mundo parar.

“Se ninguém se preparou para viver esse momento, o que será que nossas crianças estavam compreendendo e como elas percebiam as possibilidades de brincar, como estavam seus relacionamentos familiares dentro desse isolamento de alta densidade habitacional?”. Ao levar esse questionamento para sua orientadora, nasceu a intenção “de tentar captar e compreender o olhar da criança frente à covid-19 e todas as implicações que ele carrega”, conta Joana.

Imagem: As crianças se expressaram sobre o coronavírus, medos, vivências no lockdown e sonhos (Foto: acervo pessoal)

Ao mesmo tempo em que relataram os problemas, as crianças tiveram a oportunidade também de expor os conhecimentos sobre as formas de se proteger contra o coronavírus, falar de sonhos e anseios para a pós-pandemia. Em muitas, foi flagrante a importância do convívio escolar e familiar. “Meu sonho é voltar para a escola. Voltar para meus amigos. Começar a conversar normal, sem ser virtual, abraçar minha professora, meus familiares”, disse uma. “[Quero] que o coronavírus vá logo embora, né? e não aconteça mais nada”, espera outra.

INEDITISMO – Sobre os fatores que contribuíram para a premiação do artigo, Joana Clemente considera que dar voz às crianças no nível de protagonismo apresentado no trabalho é raro. “Esse trabalho é inovador no tocante a ser porta-voz das crianças em trazer realidades pouco pensadas, em retratar diversas questões extremamente pertinentes a toda uma sociedade".

Uma vez que a sociedade é formada por indivíduos, Joana considera que se esses eles vivem sob intensa situação de violência, com a percepção de incertezas, a falta de estrutura para educação (especialmente nesse momento quando se exige o on-line e muitas famílias não têm o recurso tecnológico para todos os filhos), sem alimentos na mesa, os efeitos são “ainda mais comprometedores e duradouros e nos levam a perguntar qual sociedade estamos construindo. Essa é uma causa de todos”, diz a pesquisadora.

A orientadora, Profª Márcia Machado, avalia que a premiação se deu “pelo ineditismo e pela forma muito sutil que nós tivemos de ouvir a expressão vivenciada dessas crianças que estavam num momento inusitado na vida de todos nós, que foi a pandemia”. Ela ressalta que o material é de domínio público e “tem sido usado em salas de aula quando se fala sobre o comportamento da parentalidade, das famílias, como também do desenvolvimento infantil porque nós não sabemos ainda qual a repercussão disso na vida da criança a longo prazo. Então esse foi um foco que poucas pessoas trabalharam”.

Imagens: A pesquisadora Joana Cantídio Mota Clemente e sua orientadora, Profª Márcia Machado, por ocasião da defesa da dissertação na qual foi baseado o trabalho premiado (Imagem: acervo pessoal)

POLÍTICAS PÚBLICAS – Sobre ser contemplada em um concurso nacional, Joana Clemente ressalta que isso representa não ganho para ela, “mas um ganho para as crianças que estão diariamente expostas a perigos que são normalmente naturalizados. Trazer esse debate à mesa como norteador de serviços e políticas públicas que atuem especialmente com as crianças é sem dúvidas o maior prêmio que eu ganho enquanto pesquisadora. Absolutamente tudo o que fizermos agora com nossas crianças terá um papel na definição do futuro e a infância não pode esperar”.

Ela adverte que, geralmente, quando um serviço é montado nem sempre há a preocupação [de gestores] de ouvir os beneficiários no sentido de saber deles se aquela atividade é necessária ou se gostariam de ter outra. “Sempre partimos de nossas experiências, vivências, como pensamos e nos comportamos, portanto, diante de realidades tão desiguais não podemos exigir que as pessoas tenham o mesmo pensamento ou comportamento. Isso se aplica às crianças. Nossas crianças que estão na periferia são tão crianças quanto às que estão em bairros de luxo, envoltas de tecnologia à sua disposição, mas infelizmente nem todas têm infância.”

A Profª Márcia acrescenta que, além desse trabalho, há um outro de coorte, que analisou as crianças e as famílias num momento de distanciamento físico total. Segundo a docente, saber o sentimento delas ajuda, sim, a construir políticas de tentar trabalhar, principalmente o olhar que tem hoje nos serviços de atenção, de ter profissionais (psicólogos, assistentes sociais) que acolham essas expectativas, esses medos, esses traumas que essas crianças vivenciaram neste momento de perdas, inclusive, de familiares próximos e pessoas e amigos que elas conheciam”, diz. Ela já percebe a necessidade da reestruturação, inclusive, do sistema público de saúde, de dotar profissionais das ciências sociais e humanas que acolham essas famílias.

Fontes: Joana Cantídio Mota Clemente, mestra em Saúde da Mulher e da Criança pela UFC – e-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.; Profª Márcia Machado, docente da Faculdade de Medicina da UFC – e-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.